Sempre digo: cozinhar é amor, mas também é técnica – e aqui acrescento: é química também! Se por um lado deixar os grãos de molho antes de consumir, pode ajudar a cozinhar mais rápido (técnica), por outro, há muito mais alquimia envolvida e, como muitas pessoas me perguntam os motivos para deixar grãos de molho, resolvi fazer um post bonitão pra explicar 🙂
POR QUE DEIXAR GRÃOS DE MOLHO?
Todo mundo sabe, por senso comum, que consumir grãos integrais é mais saudável e benéfico para o nosso organismo, mas tudo tem um porém! Quando preparado “errado”, ATÉ o consumo de grãos integrais podem ter efeitos colaterais chatinhos (e sérios) – desde deficiência de minerais até síndrome do intestino irritável. Se você parar pra pensar, nossa vó já costumava deixar tudo de molho ou fermentar muito antes da gente aprender o que era mingau 😛
Se você parar um pouquinho e pesquisar sobre culinária tradicional, vai ver que todas as culturas tem pratos típicos com grãos fermentados e/ou demolhados: na África deixam a farinha de milho grossa de molho durante a noite para depois adicioná-la em sopas e caldos, e eles fermentam milho ou amaranto por vários dias para produzir um mingau azedo, conhecido por ogi; na Índia, o arroz e a lentilha são fermentados por pelo menos 2 dias antes de serem preparados como idli e dosas; na Itália, os pães e pizzas eram fermentados naturalmente por horas a fio; a Etiópia tem seu tradicional pão injera, preparado com “teff” fermentado por muitos dias; bolos de milho mexicanos (pozol) são fermentados em folhas de bananeira; e por aí vai…
Boa parte dos grãos contém na sua camada mais externa um ácido fítico, também conhecido como fitato (um ácido orgânico no qual o fósforo é ligado) e como os grãos integrais não são previamente fermentados ou processados, este ácido não está neutralizado. O fitato dificulta o processo digestivo e geralmente se liga (como um ímã mesmo) a algumas proteínas e minerais no trato intestinal, como cálcio, zinco, ferro e magnésio, e pode impedir a sua adequada absorção e assimilação pelo organismo – esse é o motivo que uma dieta rica em grãos integrais não fermentados pode levar a sérias deficiências de minerais e perdas ósseas.
Por isso, o fitato é considerado um fator antinutricional – ou antinutriente – de alguns alimentos. Quando deixamos os grãos de molho, enzimas e outras substâncias neles presentes conseguem neutralizar os fitatos, fazendo com que as suas vitaminas, proteínas e minerais sejam absorvidos mais facilmente pelo organismo. Além de neutralizar os fitatos, deixar os grãos de molho também deixa a digestão mais leve, já que ajuda a “quebrar” parcialmente outras proteínas de difícil digestão, como o glúten, por exemplo.
QUAIS GRÃOS DEIXAR DE MOLHO
Os grãos que contém glúten – como trigo, cevada, centeio e aveia (que acaba tendo por contaminação cruzada! é possível encontrá-la na versão sem glúten), incluindo também malte e espelta – não devem ser consumidos a não ser que sejam previamente deixados de molho ou fermentados – como no pão de fermentação natural, por exemplo (já ensinei como fazer seu fermento natural aqui).
A quinoa – que tecnicamente não é um grão, mas um fruto da família Chenopodium – contém excelentes propriedades nutricionais, mas também alto teor de antinutrientes que deixam, inclusive, um leve sabor amargo no preparo, se não for deixada de molho. Por isso, é muito importante fazer o demolho da quinoa.
Também é muito importante deixar todas as leguminosas de molho – isso já sabíamos, né? – feijão, grão de bico, lentilha, etc. Uns possuem mais fitatos, outros menos, mas todas precisam ir pra água 🙂 Outros que precisam também, e muita gente não sabe, são: milho (expliquei mais abaixo o motivo), nozes, castanhas e amêndoas.
Arroz, trigo sarraceno e amaranto não contém glúten e são digeridos mais facilmente. O amaranto e o arroz integral contém menores doses de fitatos quando comparados a outros grãos, então se for para consumir algum grão sem deixar de previamente de molho, dê preferência a estes. Lembrando de prepará-los numa panela normal porque o cozimento em panela de pressão é excessivamente rápido e prejudica a digestão.
COMO DEIXAR OS GRÃOS DE MOLHO
A maior dificuldade que eu percebo que as pessoas tem em deixar os grãos de molho é mesmo a falta de hábito e planejamento, porque, de verdade, não dá trabalho nenhum! É só colocar os grãos de molho em água filtrada com algumas gotinhas de limão ou vinagre por pelo menos 8 horas – alguns grãos precisam de mais tempo, mas já vamos falar disso ali embaixo 🙂
Use sempre duas medidas de água para cada de medida de grão, e aproximadamente uma colher de sopa de vinagre ou limão para cada medida de água. Pra facilitar, você pode colocar os grãos de molho logo antes de dormir, e trocar a água pela manhã, caso vá deixar de molho por mais um tempinho.
Para o milho ou farinha de milho, recomenda-se deixar de molho em uma solução saturada de hidróxido de cálcio (Ca(OH)2). Isso faz com que ele libere nicotinamida (vitamina B3), que acaba ficando retida no grão. Se você consome frequentemente produtos à base de milho, o cuidado de deixar de molho na solução de hidróxido de cálcio ajuda muito a evitar a deficiência de vitamina B3 no organismo, que tem sintomas desagradáveis como pele rachada, fadiga e desordens mentais.
CONTROVÉRSIAS
Existem controvérsias sobre a necessidade de deixar tudo de molho! Alguns estudos recentes afirmam que o ácido fítico transformado pelas enzimas fermentativas ou processos de cozimento gera um fitato hidrolizado – chamado InsP6 – que tem importante ação antioxidante, é preventivo da litíase renal (reduz em 50% a formação de cálculos de oxalato de cálcio), é um cardio protetor e inibe a calcificação da aorta, reduzindo o acúmulo de colesterol, triglicerídeos e a agregação plaquetária, tão perigosos quando se trata da nossa saúde venosa.
Sabe-se também que o InsP6 tem ação anti carcinogênica, diminuindo o tamanho e a incidência de tumores (estudos realizados em cobaias) em casos de câncer de mama, intestino, cólon e fígado. Portanto, fitatos também podem ser importantes para a nossa saúde.
CALMA! Não precisa ficar se sentindo mais perdido que cego em tiroteio. O que podemos fazer, sabendo dessa controvérsia é: diversificar tanto comendo grãos e sementes deixados em molho, ou fermentadas, como também continuando a comer sem molho. Isso porque, se precisamos dos fitatos para algumas funções e, não podemos ter esses elementos presentes na alimentação para outras funções, o jeito é ir variando! Vale a pena praticar a autopercepção e sentir quais desses ingredientes você se sente melhor consumida com ou sem o demolho.
Se houver alguma dúvida, ou quiser alguma referência de leitura pra se aprofundar, conta pra mim nos cometários e vai ser uma alegria poder ajudar de alguma forma! 🙂
Eu sou a Gabi ? Sou arquiteta urbanista e metida a cozinheira! Desde que resolvi entrar no mundo do esporte, mudei minha alimentação e, consequentemente, meu olhar sobre o mundo e sobre o meu corpo. Hoje sou maratonista, me locomovo principalmente de bike, não consumo carne há três anos, intolerante à lactose, e vivo inventando moda na cozinha, onde aprendo muito todo dia